Como a brasileira Simone Menezes se tornou uma das poucas (e mais importantes) regentes de orquestra no mundo

Simone Menezes vive em Lille, no norte da França, de onde viaja para atuar como regente convidada em diferentes países. © Bruno Bonansea

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS –  Tornar-se regente de orquestra não foi um plano precocemente concebido pela brasiliense Simone Menezes. Seu destino acabou sendo composto em uma partitura de forma quase natural. Aos seis anos de idade, já estudava piano. Três anos mais tarde, ensinava flauta para crianças de sua vizinhança, porque não via graça em tocar sozinha o instrumento. Aos 20, ainda durante sua graduação, criou a Orquestra Sinfônica Jovem da Unicamp e assumiu como regente assistente da Orquestra Sinfônica da USP. Naquela época, não havia se conscientizado de que estava adentrando em uma profissão predominantemente masculina, em que uma mulher com uma batuta na mão era percebida como uma ousadia e um comportamento inapropriado. “Infelizmente, hoje isso ainda não é normal”, diz, aos 40 anos. “Foi engraçado, porque na minha história nunca ninguém me falou que não poderia ser regente. Quando criei a orquestra na Unicamp, era jovem, os músicos que vieram trabalhar comigo também, e não tive problemas. Comecei realmente a sentir que não tinha o direito de estar ali quando passei a trabalhar como regente convidada, e percebi que portas se abriam para outros, mas não para mim. Era como se fosse invisível. Não tinha ainda essa compreensão de que existia um preconceito”.

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Em um dossiê sobre o tema publicado no ano passado, a revista francesa Diapason, especializada em música clássica, apontou que de 744 orquestras recenseadas no mundo, apenas 32 eram dirigidas por mulheres, ou seja, menos de 5% do total. Não faltam exemplos – de um passado não muito distante – que atestam a discriminação de gênero nos palcos da música erudita. Em uma entrevista em 2013, o maestro russo Yuri Temirkanov, da Filarmônica de São Petersburgo, afirmou que “a essência da profissão de regente é a força, e a essência da mulher é a fraqueza”. O célebre Herbert Von Karajan (1908-1989), reconhecido por sua excelência na regência, é também conhecido pela frase pronunciada em 1979: “O lugar de uma mulher é na cozinha, não em uma orquestra sinfônica” (a seu favor, em 1982, impôs a clarinetista Sabine Meyer à Filarmônica de Berlim, criando um conflito com os músicos, que recusavam a nomeação, contrária à autogestão na escolha dos membros da orquestra). Até 1997, a Filarmônica de Viena era formada exclusivamente por homens, mulheres não eram admitidas nem nas audições. O quadro mudou quando, às vésperas de uma turnê nos Estados Unidos, associações como a International Alliance for Women in Music ameaçaram apelar ao boicote dos concertos, levando a tradicional orquestra a contratar oficialmente a harpista Anna Lelkes.

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Simone confessa que chegou a pensar, ingenuamente, que a falta de oportunidades profissionais era resultado de uma falha em sua formação. “Foi graças a essas portas fechadas que fui andando para frente, pois achava que deveria me aperfeiçoar. Foi quando vim uma primeira vez para estudar na Europa, em Paris, Londres. Mais tarde, voltei para o fellowship com o Paavo Järvi (reputado maestro estoniano), na Alemanha, trabalhei com ele e senti que fazia isso muito bem. E olhando para trás, notei que o problema não tinha a ver com a minha capacidade, e sim que não havia espaço para a mulher. E aí dá aquela sensação de frustração”, admite Simone, que é diplomada em Direção de Orquestra na École de Musique de Paris.

Desde 2017, vive com o marido, o engenheiro Humberto Menezes, e a filha, Júlia, de 10 anos, em Lille, no norte da França, de onde viaja para atuar como regente convidada de orquestras francesas e de diferentes países, Brasil incluído. A cidade francesa possui, para ela, a melhor estação de trem da Europa: “Estou a cinquenta e nove minutos de Paris, trinta e cinco minutos de Bruxelas e uma hora e quinze minutos de Londres. É estratégico nesta fase em que viajo muito. Daqui a uns dias vou para o Japão, para duas semanas de trabalho com orquestras de Osaka e de Tóquio. No programa, há Stravinsky, Prokofiev, Copland, Hindemith, e fiquei muito feliz que eles toparam também obras de Villa-Lobos. Aqui na Europa, ainda tem um peso grande da tradição. Lembro uma vez que sugeri Villa-Lobos para uma orquestra da Alemanha e me disseram que era música para se tocar no verão. Um absurdo”.

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Em 2013, criou a Camerata Latino-Americana, com a “missão” de explorar o repertório musical do continente, e no ano que vem deverá inaugurar seu novo projeto, o Ensemble K, que se pretende multidisciplinar e internacional, com integrantes de diferentes nacionalidades (brasileira, italiana, espanhola, romena, holandesa e belga). “Deveremos começar a temporada em janeiro de 2020. Somos entre 12 e 15 músicos, e a proposta é tocar o repertório clássico e contemporâneo, com projetos multidisciplinares, nessa discussão atual de cruzamento das artes e de uma maior abertura para o público, em novas formas e espaços alternativos”.

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Nos países escandinavos, cerca de 30% dos regentes são mulheres, graças à implantação de um sistema de cotas. Simone acredita que essa pode ser uma solução emergencial para acabar com o padrão masculino no pódio das orquestras: “Não era a favor de cotas, mas estou começando a mudar de ideia. Por um determinado tempo, talvez seja um mal necessário, porque uma mudança de mentalidade pode levar décadas, e isso ajudaria a acelerar o processo. O mais curioso disso tudo é que não sinto um preconceito do público. É preciso quebrar o paradigma nas instituições, com os músicos e formadores de opinião”.

Como possui também nacionalidade italiana, foi selecionada como uma das três finalistas da etapa europeia do Prêmio Mawoma (Music and Women Maestra), primeiro concurso mundial dedicado a mulheres regentes, realizado em abril, em Viena, no qual terminou classificada em segundo lugar. A seleção sul-americana da competição ocorrerá no Rio, em setembro. “Considero importante essa iniciativa, que também sofre resistência”, ressalta.

Ao longo de sua trajetória, Simone acumulou episódios sexistas como maestrina. Na primeira vez em que dirigiu a Orquestra da USP, escutou um comentário no corredor: “Ela é bonita, e rege bem”. Para ela, a desafinada sequência indica a inversão de valores, ainda atual: “Fiquei incomodada pela ordem da frase”.

  • TEXTO PUBLICADO NA REVISTA ELA, DE O GLOBO.